A Cidade Moderna
- Portal
- 19 de fev. de 2017
- 2 min de leitura

Ontem foi o rio que desapareceu. Nenhum vestígio apenas pó. Nem as pedras que entretiam o baile das trutas nas corredeiras das águas. Nada.
A cada dia que estou aqui nesta cidade uma parte esvanece. Hoje acordei no chão onde havia a casa de minha avó. A Vila Bonsucesso com suas 25 casas desapareceu e há apenas um vestígio da cal que ungia as paredes. Na casa 9, da tia da menina Beta, restou um azul da janela. Nem sabia que cores tem sombras. Aqui tem como no olhar da menina portuguesa, branca e presa. Nem flertar podia, a Beta desparecida.
As árvores foram as primeiras a ir embora. O que estou dizendo? Não, elas também desapareceram e com elas o vento que todos conhecíamos.
Amigo antigo da região. Vinha correndo lá das montanhas do campo...agora transparente, sem elas. Como se um pintor apagasse na tela seus detalhes de composição. Um deus que desfaz a cria como nos embates mitológicos onde o que mais aprendemos é a natureza da vaidade. A vaidade vem dos céus. Aprendi com as conversas, em voz baixa, das velhas do ex-lugar.
Onde havia, suponho, o antigo prédio da Biblioteca Publica encontrei um único livro. Grosso, capa dura e letras de esmaecido e falho dourado. Um livro em braile. Me faz pensar com os dedos e entender com toques. Ainda não sei sobre o que diz a historia. Sou cego desse ler. Seguro o livro entre os braços e caminho na falta de historia, de ruas, de esquinas dos becos sem saída. Onde achava sempre o melhor a se fazer.
Nada se vê da cidade moderna que tinha orgulho de sua famosa ponte de vidro. Restaram cacos espalhados ao longo do nada como a indicar um labirinto no vazio. Nele ninguém perde o que não há de se perder.
Onde estava o circo que visitava a cidade? Não sei dizer já que na terra há rastros claros e recentes de sapatos grandes como aqueles que os palhaços trajam. Nem uma lantejoula perdida para me dar certeza do que intuo, nada.
Conforto há em saber que circos somem mesmo. É seu mistério itinerante. Circo é um marimbondo. Não se sabe de um veio, não se sabe para onde vai, dizia a tia da Beta que eu amava precoce. Beta, meu doce da solidão no banheiro. No barulho do desejo era o nome que eu dizia de olhos fechados e mão ocupada para fazer desaparecer o incontível tesão.
Eu canto: Da Fonte dos Viajantes restou minha sede e nisso sim insiste a verdade. Vou me embora deste deserto, deste desertão, deste sertão... não sei se estou na saída, não restou nenhuma indicação. Então pousa um pássaro escuro e solitário. Seus olhos são grandes amarelos. Parado observa alternando a direção de onde aponta o bico. Ele me vê. Nos olhamos, o coração dispara. Ele fecha os olhos. Eu também fecho os meus. Um instante no escuro da retina...
Finalmente nossa vez de desaparecer nesta única página.
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