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"Corre Otávio" 

Por: Anselmo Vasconcellos

Meu tio Otávio era relojoeiro daqueles antigos, curvado devante uma pequena bancada repleta de miudezas e engrenagens. Havia um maçarico no canto, ajustado à bancada, e era rara a destreza daquele mulato inzoneiro ao acender seu cigarro caporal Amarelinho, sem filtro, na chama azul que derretia metais. Achava assombroso este pequeno espetáculo do mestre Otávio. Na entrada da lojinha, na Rua da Gloria, reinava seu inseparável papagaio baiano num poleiro aberto. Se os ricos tinham seu alarme em um cuco, Otávio tinha Alarico, malandro alado que falava sem sotaques e em bom tom seu bordão favorito:

– “Corre Otávio”

Macho de muitas cabrochas era o meu tio. Tenho primos que descubro até hoje nesse tempo eletrônico onde ninguém mais se esconde e onde falta uma graça, um golpe bem humorado na inocência que só um bamba de camisa de seda e calça panamá e sapatos bicolores saberia aplicar em algum incauto. “Tem freguês pra tudo”dizia meu tio.
Pois vou lhes contar: Uma manha de segunda-feira um senhor com forte sotaque estrangeiro entrou na relojoaria e cumprimentou o tio ali envolvido com um velho relógio de corda. Pediu o gordo senhor, suado e vestido com o terno inadequado um conserto pro seu relógio de bolso que reluzia na sua mão e no vidro do monóculo do meu tio que já levantou como um passista de escola de samba e examinou a peça.

– Bela máquina senhor, é raro um Mido como este. Deve ser bem de família, to certo ou to errado?

O momesco senhor narrava a historia de sua gente, da Europa de antigamente e meu tio abriu o “bobo” que é como ele chamava um relógio. “Bobo sim, porque trabalha pra homem de graça” dizia ele sem tremer o cigarro no canto da boca. Deu uma limpeza na maquina, deu corda no emergente que suava e falava pelos poros. Deu por terminada a tarefa e lustrou a peça de ouro. Levantou para entregar cerimonialmente o relógio ao gordo mas, antes acertou os ponteiros mirando ostensivamente para o famoso Relógio da Gloria, aquele belo monumento que fica na curva da amurada da rua. O gordo mordeu a isca como um Baiacú. Comentou a beleza ostensiva do relógio no que meu tio com olhos turvos disse quase murmurando:

– “Está à venda”
O homem gordo se enxugou desejando saber mais. Otávio nada disse, foi ao fundo da lojinha abriu um velho cofre que nem fechava mais e voltou com um certificado em letras trabalhadas (ele mesmo que fez, claro) e selos colados. Mostrou ao gordo estrangeiro e disse olhando nos olhos verdes da inocência:
– “Tudo que sobrou da minha família, estou precisando vender. Tenho um câncer”
O gordo perplexo pediu o preço e meu tio mandou o que podia estar no bolso do otário.

– “Cinco mil cruzeiros na minha mão entrego o certificado de propriedade”

O gordo branquelo certo da ingenuidade do mulato, meteu a mão no bolso que retornou com um maço de notas novas e no embalo do gesto colocou sobre a bancada. Otávio contou saborosamente e comentou que tinha cinco mil e seiscentos cruzeiros no que o gordo sorriu dentes mal tratados.
Recebeu o certificado comentando que traria uma caminhão e homens para desmontar o relógio. Otávio concordou silenciosamente, o gordo seguiu pela rua e Alarico pontuou:

– “Corre Otávio”

"Antídoto"

imagem: reprodução google

Por: Anselmo Vasconcellos

Meu antídoto da semana foi uma fita cinematográfica. O pessoal do tempo da película refere se assim ao rolo de fotogramas que a luz perpassa e ilumina a tela grande. Puig dizia que queria ser a luz que atravessa a fita e vira imagem. Adotei essas idéias.
A narrativa acontece numa ilha grega e acompanhamos um encontro de trabalho entre um escritor inglês, recém-chegado à Grécia de navio, e um nativo já com alguma idade, mas forte e ativo. O pano de fundo é a microcéfala vida dos habitantes deste mundo perdido em preconceitos, pobreza, raiva, e inveja. Com pavio trágico acesso a história vai explodindo casos em plots quase documentaristas. As cenas são realizadas com elenco excepcional e figuras locais antológicas e críveis. Não há nenhum verniz de métodos, tudo é realisticamente teatral para que não esqueçamos que o discurso cinematográfico é político.
A veia principal é a relação patrão-empregado ficando de lado e é na amizade entre o grego naif e louco e o escritor britânico e careta que encontra inspiração para sua vida até então dedicada apenas aos livros e de poucas aventuras.
Em um cena o naif grego pergunta ao escritor que respostas ele encontrou nos livros. Ele responde que encontrou apenas as angustias dos que fazem esta pergunta. O grego afirma que sem a loucura a vida não se revela, que ele pode arruinar a relação com ideias perturbadoras e incomuns. O inglês diz que topa. “repita isso”diz o grego e o inglês topa.
Esse é o antídoto que fará do retumbante fracasso, que acontece no trabalho, na cena magistral que cada vez que revejo renovo minhas células com o liquido das emoções. Os dois riem da falência e dançam juntos o Sirtaki na música fabulosa de M. Theodorakis.
Zorba, o Grego de 1964 é uma resposta humana e lúcida ao mundo tecnológico. Uma lição de vida e um convite a aproveitarmos cada minutos intensamente, como se não houvesse amanhã, de maneira simples, mas buscando a felicidade nas pequenas coisas da vida. Nenhum blackmirror me proporciona uma Aventura como esta. Vou ali ser o Antony Quinn e volto sexta que vem.

O filme foi dirigido por Michael Cacoyannis e o personagem-título foi interpretado por Anthony Quinn — que não era grego, mas mexicano. O elenco incluiu Alan Bates como um visitante britânico. O tema, “Sirtaki”, de Mikis Theodorakis, tornou-se famoso e popular como canção e dança (especialmente em festas).

O filme foi rodado na ilha grega de Creta. Lugares específicos incluem a cidade de Chania, a região de Apocórona, nomeadamente na península de Drápano, e a península de Acrotíri. A famosa cena onde o personagem interpretado por Quinn dança o Sirtaki foi rodada na praia do vilarejo de Stavros.

Mais sobre o filme em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-86795/

The Game of Selfies 

Por: Anselmo Vasconcellos

…sucesso é uma façanha que desafia o entendimento. Não há como elucidar, com base no conhecimento da cognição humana, o que faz algo cair no gosto de muitas, muitas pessoas. Ha “formatações ” possíveis nas academias, monografias e discussões intelectualizadas mas mesmo assim tal façanha escapa para além das tábuas de medição e surpreendem os quesitos assinalados para pontificar. Sobram porém elogios e paixão de muita gente bacana que admiro, trabalho e aprendo. Me surpreendo de fato. Me esforço, sinceramente, para entender o que seduz os espectadores, ou melhor, os adoradores do Got (Games of trones). Luto contra o sono la pelas 22h30 num domingo, vejo a reprise, converso com colegas nos sets e camarins, leio comentários nas redes…Mas o máximo que consigo é ter vontade de rever Fellini, Kurosawa, Passolini, Kubrick, Glauber, Costa Gravas, Cassavetes, J. Ford, Manoel de Oliveira, Ruy Guerra, Carvana, Leon Hirszman, Anselmo Duarte… E mais uma multidão de realizadores que sem aquele “caminhão-de-dinheiro” visto na referida produção conseguem aprofundar com a arte a própria vida. Confesso que muitas vezes salvei a minha numa sala escura de cinema com aquele feixe de luz que travessa o espaço instruindo e iluminando minha grande ignorância. Então como posso me envolver com uma série que trata a violência, o assassinato, o desespero com a mesma gratuidade com que inventa invernos e verões como se a natureza dos homens e da vida deste planeta assim o permitissem. Hoje pela manhã uma querida colega na sala de maquiagem ouviu meus comentários e disse: -“Nada faz sentido nesse mundo, esquece”.

 O QUE ARDE CURA

Por: Anselmo Vasconcellos

Um jovem admirador de Baden-Powell que idealizou a “Lei Escoteira” que não estabelecia leis proibitivas, mas conceitos para formação de pessoas benévolas, era o filho mais novo dos 7 de vovó Carmen. Todos com nomes começando com a letra A: Adir, Acir, Alair, Altair, Albino, Amyr e Atila.
Andando na rua Larga de Bonsucesso, Átila sentiu algo entrar em seu olho e com o lenço de escoteiro tentou aliviar o incomodo e as lágrimas abundantes em resposta à invasão. Chegou em casa e reclamou com a mãe prestativa que logo foi à Pharmacia Homeopática e, com seu Guilherme, aviou um colírio. Era assim naqueles idos e eu nem minha irmã eramos nascidos, nem manipulados.
Na varanda Atila sentou seus 24 anos na beirada do umbral em arco e vovó Carmen colocou seus óculos, empunhou o vidro azul e pingou a essência no olho do escoteiro que sentiu arder mas segurou o pulo de dor. Carmen percebeu e pingou no outro olho sem deixar de enaltecer:
“O que arde cura! “
Seus olhos se apertaram para tentar ler no alto do umbral a inscrição que vovô Gaspar tinha mandado aplicar em relevo de pastilhas coloridas: “Esta casa é um Lar “. Atila reclamou que a as pastilhas fugiram de vista. Vovó levou ele para o quarto para deitar. Na cama deixou aquele jovem corajoso a sua sorte com pano sobre o rosto da solidão e da surpresa deste dia em Bonsucesso.
Atila acordou com olhos azuis dos cegos. Médico nenhum deu esperanças ao desespero da vovó. Aquela fórmula queimou os olhos de Atila tingindo de escuridão para sempre.
Ingressou na Aliança dos Cegos, aprendeu a estofar, fabricar vassouras, espanadores e petecas. Sua nova educação o levou a proezas que a família contava. Inventou uma bengala dobrável articulada com elásticos, cabia na mão e com ela caminhou firme pelas ruas dos anos que passaram. Aprendeu a ler Braile, cresceu belo de letras. Sensível, calmo sentia o mundo, perdoou a cegueira da mãe, sem sequer protestar. Foi com ele que aprendi a não reclamar.
Uma tarde de outono cheguei em casa e Tio Atila, sentado no sofá da sala, ouviu minha voz. Abriu seu relógio de bolso, lendo as horas com os dedos, disse:
– “Você cresceu bastante. Está estudando de manhã agora? “ Sabia ver meu tamanho pela altura da minha voz. Minha mãe nos olhava emocionada e almoçávamos juntos. Um requinte sua atenção e olfato ao comer. Depois eu o levava até o ponto de ônibus onde me despedia orgulhoso daquele grande homem que tinha tanto. Adorava enxergar nos amigos a razão de dizer: Tenho um tio cego. Ele é campeão de tiro ao alvo, sonoro.
Uma manhã, Atila tocou a campainha de uma casa para oferecer vassouras e outros produtos. Atendeu Helena, uma doce mulher que o reconheceu abrindo seu coração para ele, como se o esperasse lhe deu dois filhos, uma vida simples e feliz. A última vez que o vi ele tirou os óculos escuros, olhou na minha direção e me disse:
– “A vida me deu os olhos de Helena”.

                                             Ataque Lírico

 

A infância ainda vive trêmula como uma bandeira ao vento em seu olhar astuto sobre as coisas do cotidiano. Penso isso enquanto ouço ele falar em nossa primeira refeição do dia. Observo lembranças de um sitio que construímos para aventuras agrestes e fico por trás dos pensamentos. Ele fala e é tão belo na juventude do seu corpo trabalhado de menino baldio. Deixo as palavras soarem sentidos como aqueles sapos que ele capturava a noite com uma lanterna e deixava-os dentro de um balde posto de cabeça pra baixo no terreno. Uma pedra grande em cima, por segurança contra a fuga.

Ele me conta de uma mascara oriental que gostaria de vestir em seu rosto e me informa que hoje é o Dia da Terra.

 

- A Terra é o planeta, certo? Pergunto e ofereço um suco de goiaba.

- Sim. Diz ele encomendando me ovos mexidos.

 

Quando acordava, de manhã, ele corria para ver os sapos e estancava na surpresa do sumiço. Me interrogava desconfiado, eu atribuía aos mistérios das matas. Seus pequenos seres protetores soltaram os sapos, eu afirmava com a mesma convicção que usei no cartório quando escriturei o sítio e dei o nome: Sítio dos Duendes.

Mexo os ovos em chama branda e a conversa dele me doura o ânimo. Sirvo os ovos e duas torradas saltam da torradeira.

 

- Sabe quando você está em estado de torpor e nada faz sentido, o corpo treme, a vista embaça e a voz não sai? Então como uma força regeneradora um novo fluxo acontece, tudo faz sentido. Corpo e mente conectados. Ele me diz piscando o olho esquerdo, pelo sabor da refeição caprichada.

 

Vejo seu monumental tombo da bicicleta na ladeira de barro do sitio. Um rasgo sangrando no ombro e ele firme sem dizer nada de dor. Costuramos pontos na sua pele e ele quieto como agora ostentando no peito nu a grande cicatriz dessa herança da terra do nunca.

 

 

- É um “Ataque Lírico”, sabia? Diz ele concluindo a conexão corpo e mente que me ensina como um índio feiticeiro, falando de uma erva segredo da selva amazônica que tudo limpa no corpo.

 

- Dá onde você tirou essa? Esta expressão me ilumina, daria um belo titulo de um espetáculo...”Ataque Lírico”. Digo a ele em meio a sorrisos grandes e completos.

 

- Ouvi numa música, pai. Ele canta impreciso e agradecido pelos ovos que elogia com prazer.

 

O que vale mesmo é a sua ressignificação utópica. Penso. Não temos mais esse sítio na vida atual crescida, adulta. Quase digo para ele que quem soltava os sapos era eu. Melhor deixar ele lá entre os duendes da Terra.

                                                             Muito Além do Jardim

 

Ouvimos um estalo e seguiu se um movimento vigoroso de queda. Bateu sobre o chão, o peso insuspeito deu seguidos e curtos saltos antes da inercia sobre o chão. Toda essa força ressoou em sonoridades, na minha impressão de vê-la cair e isso disparar em mim outras quedas de compreensão, outros pesos sobre essa fluência espantosa que os sentidos fazem no corpo que não pensa, sente. Deveras sente, pode ser até que para sempre.

Como algo que vai revelando toda a seiva do tempo nesta massa aglutinada do tronco e por dentro da casca ressecada, escura, partida, uma cor nova - antes escondida, novíssima de vida. Deve ser sua força que vi fazer ressurgir novos braços, galhos de si em busca da luz, do ar, da energia flutuante que não vemos. Sempre como uma resposta aos cortes, novas formas surpreendiam, de um dia para o outro, o olhar de ver tamanha vontade de viver, de continuar vivendo.

Tantos anos convivendo com ela eu vi essa arte, pois só pode ser arte essa consciência que cria a existência e refaz desenhos, formas, folhas, flores e frutos elevando-se e aprofundando-se aparentemente sem sair do lugar. Agora vejo que não, ou compreendo que seu movimento de extensão, seu crescimento é locomoção invisível. Talvez eu tenha que andar por só saber o visível.

Dois dias depois da queda ainda encontro vestígios espalhados, pequenos cacos, cavacos são traços do que foi seu inteiro.

Tanta solidez requer muita força para remove-la do chão onde está inerte, caída na revelação que nos obriga a vê-la, o que faz lembrar como foi sua presença entre nós, seu abrigo de outros seres mais alados do que nós, mais necessitados de espaços frágeis, outros ninhos em que não cabemos. Pensei nisso vendo sobre ela uma procissão de formigas.   

Sem saber o que fazer passei por ela algumas vezes, pensei em mante-la entre nós, aproveita-la num invento inútil – um banco para sentar e ouvir Bem-te-vis, súbito veio a ideia de escrever. Não só sobre ela, seu corte, sua queda, sua grandeza, mas escrever como alguém arrependido grava seu nome como uma tatuagem sem sentido. Foi o que eu fiz agora mesmo. Escrevi meu nome no seu corte e no meu corte doía tanto ver uma ` `arvore cortada, caída no chão do jardim.

 

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Anselmo Vasconcellos

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